A insatisfação do governo com a solução dada pelo relator, deputado Sandro Mabel (PR-GO), aos atuais incentivos fiscais do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pode inviabilizar a já difícil possibilidade de que a reforma tributária seja aprovada ainda este ano pela Câmara e ajude a contrabalançar a piora de expectativas gerada pela crise internacional em relação ao comportamento da economia nos próximos anos. O resultado da reunião feita ontem pela comissão especial da reforma – a primeira depois do "recesso branco" da campanha eleitoral – já refletiu esse impasse. Frustrando a expectativa dos demais deputados, Mabel não entregou seu relatório – agora prometido para meados da semana que vem.
O parlamentar explicou que o texto final de seu substitutivo não ficou pronto porque o tema é complexo e exigiu muita conversa com diversos Estados. O principal motivo do atraso, no entanto, é a falta de acordo com o governo federal e também com o Estado de São Paulo, detentor da maior bancada na Câmara. Nem o Ministério da Fazenda nem o governo paulista querem que o texto constitucional convalide explicitamente benefícios fiscais de ICMS concedidos sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz, colegiado de secretários estaduais de Fazenda), portanto, no âmbito da guerra fiscal, para atrair a instalação ou ampliação de projetos empresariais.
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, programava se encontrar ainda ontem à noite com Sandro Mabel e o presidente da comissão da reforma tributária, deputado Antonio Palocci (PT-SP), na tentativa de chegar a um acordo antes da apresentação do relatório. "A questão dos incentivos fiscais é algo ainda a ser resolvido", admitiu Palocci, depois da reunião da comissão especial da Câmara.
Na visão do ministério, até agora levada em conta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma coisa é dar, indiretamente, sobrevida limitada no tempo a esses benefícios, promovendo uma transição lenta para a nova moldura do ICMS. Outra coisa é validar explicitamente no texto constitucional a lista de benefícios que for apresentada e publicada por cada Estado, como propõe a atual versão, ainda informal, do relatório de Mabel. Pela atual proposta do relator, só não seriam convalidados incentivos ao comércio atacadista que propiciam "passeio de nota fiscal", ou seja, falsificação do caráter interestadual da venda pelas empresas (fisicamente a mercadoria não chega a sair do Estado produtor), para pagar menos imposto com incentivo de outro Estado.
Segundo uma fonte próxima ao presidente Lula, se o relator não mudar de posição, o governo deverá orientar sua base parlamentar aliada a votar contra o relatório de Mabel, pelo menos nesse aspecto. Como esse é um ponto polêmico da reforma tributária, o impasse atrasaria ainda mais a tramitação da respectiva proposta de emenda constitucional (PEC), pois Lula dificilmente conseguiria unir os governistas em torno da posição da Fazenda. Aliados ou não a Lula, muitos parlamentares tenderão a votar de acordo com o interesse de seus Estados. E pelo menos 23 governos estaduais já teriam aderido ao relatório de Mabel e manifestado disposição de pedir a suas bancadas apoio à proposta. São Paulo seria o único contra. Mas Estados ainda "em cima do muro" , como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, também são donos de grandes bancadas e podem se aliar à posição paulista.
O acordo prévio entre Mabel e Fazenda era encontrar uma solução que tivesse apoio de todos os Estados, para garantir aprovação rápida da reforma. O relator, por sua vez, alega que, diante da impossibilidade de consenso absoluto, não pode ignorar a vontade da maioria dos Estados, que faz questão da convalidação dos atuais incentivos fiscais. Mabel entende que a demanda pela convalidação é justa, pois se trata de dar um mínimo de segurança jurídica para a empresas que investiram em novas plantas industriais a partir de benefícios fiscais. Os incentivos foram praticados principalmente por Estados mais pobres em termos de arrecadação e de renda per capita, muitos do Nordeste, como forma de contrabalançar a melhor infra-estrutura logística e o maior mercado consumidor que Estados mais ricos, como São Paulo, têm a oferecer às empresas.
Os paulistas estão preocupados porque a convalidação constitucional tiraria a legitimidade das medidas adotadas por São Paulo para neutralizar incentivos fiscais de outros Estados. Essa neutralização em geral é feita via glosa de créditos tributários referentes a impostos supostamente pagos em Estados que concedem incentivos.
Na visão de governistas mais fiéis, o importante para Estados mais pobres não é uma convalidação explícita e sim ampliar o prazo de transição para as novas regras do ICMS. Nesse ponto, a Fazenda aceita o relatório de Mabel, que prevê transição em 12 anos e não em 7 anos.
Com ou sem convalidação, a nova moldura acabará naturalmente com a razão de existir das isenções e reduções de ICMS concedidas com a finalidade de atrair empresas, porque a maior parte do imposto pertencerá, no final do processo, ao Estado de destino. Por isso, a ampliação do prazo de redução das alíquotas interestaduais de ICMS – parte do imposto que fica com o fisco de origem nas vendas entre Estados – não chega a ser um problema para o governo.
Embora não tenha apresentado relatório, Mabel antecipou ontem alguns pontos já definidos. Conforme o relator, ficará claro que o Fundo de Equalização de Receitas (FER) vai garantir aos Estados, por 19 anos, o mesmo nível de arrecadação real visto no último ano anterior ao de início do processo de queda da alíquotas interestaduais, hoje de 12% ou 7%, dependendo dos Estados envolvidos.
A forma de atualização dos valores será definida no projeto de lei complementar de regulamentação do FER. O relator também quer assegurar que os Estados não percam caso a regulamentação do fundo demore a sair. Para tanto, o texto condicionará o início do processo de redução das alíquotas à regulamentação do fundo. Enquanto o o FER não estiver funcionando, o processo não poderá começar, nem mesmo depois de vencido o intervalo de de dois anos previsto na proposta.
Na tentativa de conseguir apoio do PSDB e o DEM, o relator também decidiu incorporar ao texto um comando constitucional para criação, por lei complementar, de um código de defesa do contribuinte. Esse código teria o papel, por exemplo, de evitar retenções não justificadas de restituição de Imposto de Renda. Também deverá ser incorporada a proibição de uso de medidas provisórias para criação ou elevação de tributos.
Veículo: Jornal Valor Econômico.
Editoria: Política.
Jornalistas: Mônica Izaguirre e Marta Watanabe, de Brasília e São Paulo.