Contratações públicas emergenciais

A regra geral, determinada pela Constituição Federal, é no sentido de que as contratações feitas pela administração pública, direta e indireta, sejam precedidas de licitação, para que, assim, sejam proporcionadas iguais oportunidades a todos os interessados e seja selecionada a melhor proposta.

A Lei nº 8.666, de 1993, ao disciplinar as licitações e contratações públicas, cuida, também, das exceções e, em seu artigo 24, inciso IV, permite a dispensa do procedimento licitatório para contratações emergenciais, entendidas como casos de emergência ou de calamidade pública, nos quais a demora poderia acarretar prejuízos ou comprometer a segurança de pessoas, obras, bens e serviços. O prazo máximo da contratação é de 180 dias, sendo expressamente vedada a prorrogação do contrato.

Não basta, todavia, que a autoridade responsável simplesmente alegue que se trata de uma contratação urgente. Toda alegação de urgência deve ser devidamente motivada e instrumentada com a comprovação dos fatos que a houverem ensejado, para que possa haver efetivo controle administrativo ou judicial. Urgência não pode ser pretexto para burlar o princípio constitucional da isonomia.

Em notável estudo doutrinário a eminente Ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), já assinalou que: "Urgência jurídica é, pois, a situação que ultrapassa a definição normativa regular de desempenho ordinário das funções do poder público pela premência de que se reveste e pela imperiosidade de atendimento da hipótese abordada, a demandar, assim, uma conduta especial em relação àquela que se nutre da normalidade aprazada institucionalmente". (RTDP, 1/233)

Também não é possível criar uma urgência artificial, decorrente da própria omissão – muitas vezes deliberada – da autoridade, a qual, sabendo que, dentro de pouco tempo teria que efetuar uma contratação, deixa de abrir a licitação em tempo hábil para, então, lançar mão da contratação emergencial, ou então, simplesmente prorrogar um contrato que deveria se expirar por ter chegado ao seu termo final.

O fato é que, normalmente, a necessidade de efetuar um novo contrato, por meio da precedente licitação, é sempre previsível. Somente situações especiais, verdadeiramente imprevisíveis ou decorrentes de fatos inevitáveis, desde que demonstrada a necessidade e conveniência (inclusive economicidade) da contratação ou prorrogação emergencial é que autorizariam essa prática.

Todavia, o que tem ocorrido com muita frequência na administração pública é o abuso dessa exceção, subvertendo a regra geral. O administrador inescrupuloso simplesmente deixa de abrir a licitação e, alegando a urgência, invocando o princípio da continuidade do serviço público, que não pode ser interrompido, ou faz um novo contrato emergencial ou, então prorroga o contrato que deveria terminar, havendo, ainda, muitos casos de reiteração da prorrogação, ou seja, de nova prorrogação do contrato já prorrogado, com incontestável violação da expressa proibição legal.

Para assim proceder e para forrar-se contra eventual responsabilização, a autoridade alega a situação de urgência, justifica a necessidade de que o serviço não seja interrompido e solicita um parecer jurídico (normalmente de um assistente de sua confiança – não de um procurador de carreira), para encobrir a desídia e evidenciar seu (falso) cuidado no trato do assunto.

É preciso deixar claro que contratações e prorrogações emergenciais indevidas, e muito especialmente as prorrogações de prorrogações, as quais fazem com que, na prática, o contrato fique com prazo indeterminado, violando o parágrafo 3ºº, do artigo 57 da Lei nº 8.666, de 1993, são atos ilícitos, gerando responsabilidade, ensejando a condenação por improbidade administrativa, com todas as suas decorrências. O parecer jurídico não tem o condão de elidir nem a ilicitude da conduta da autoridade, nem a sua responsabilidade pela reparação dos danos, sem prejuízo da sanção penal e da decorrente inelegibilidade.

Na verdade, o próprio autor do parecer jurídico encomendado é que também pode ser responsabilizado. Com efeito, o artigo 133 da Constituição Federal confere aos advogados em geral, inclusive assistentes jurídicos e procuradores públicos, a inviolabilidade por suas manifestações não é absoluta, mas, sim, limitada, não se aplicando a pareceres emitidos com dolo ou culpa ou sem a devida fundamentação ou respaldo legal, jurisprudencial ou doutrinário.

A contratação ou prorrogação contratual efetuada mediante falsa motivação de urgência configura desvio de poder, que é uma ilicitude qualificada pela imoralidade, uma vez que se trata de uma ilegalidade disfarçada, feita com o intuito de enganar. O grande problema com o desvio de poder está exatamente em sua aparente regularidade, obrigando a um exame mais aprofundado dos motivos e fundamentos alegados pela autoridade para que se possa aferir seu suporte fático, sua verossimilhança e a correlação lógica entre asa alegações feitas e a dispensa de licitação.

Adilson Abreu Dallari é professor titular da PUC-SP

Veículo: Jornal Valor Econômico.
Editoria: Legislação & Tributos – Artigo.