Aposentado há três décadas da função de operador da Usina Hidrelétrica do Salto, Fritz Mailer, 91 anos, ainda conserva caprichosamente na pastinha de ofício as folhas amareladas pelo tempo, com medições marcadas com canetas vermelha e azul, que fazia do Itajaí-Açu em períodos de cheia. Diariamente, às 7h, o técnico descia à margem do rio para conferir a altura das águas e telefonava aos colegas de oito bases no Vale do Itajaí, para reunir dados sobre a quantidade de chuva e a força da correnteza. Informações preciosas que definiam as condições do acionamento das turbinas da usina.
Mas era em época de chuva forte que o anônimo operador se transformava no guru blumenauense. Durante 30 anos, as mãos de Mailer, que hoje não ostentam a firmeza de outrora, traçavam no papel as curvas de previsão da enchente para o município.
– Era um serviço voluntário. As pessoas e as rádios ligavam para mim para saber da previsão. Quando chovia muito, a gente fazia as curvas, considerando que daqui da usina, as águas levavam quatro horas para chegar ao Centro – recorda Mailer.
O conhecimento rendeu a ele o apelido de enchentólogo. Foi só em 1940 que começaram as medições periódicas do rio, na antiga Empresa Força e Luz. Mailer desenvolveu previsões para 28 enchentes. A última que participou, já aposentado, foi a maior que registrou: em 1984, o pico chegou a 18,60 metros na usina e a 15,46 metros no Centro. Foi nesta época que meteorologistas substituíram os técnicos.
O alento das barragens
A construção de barragens no Vale do Itajaí foi cogitada após a cheia de 1961. O governo federal criou um grupo de trabalho em 1965 para estudar a bacia do Rio Itajaí-Açu. O primeiro grande reservatório foi construído em 1973, em Taió, para conter a vazão do Rio Itajaí D'Oeste. Em 1976, foi concluída a Barragem Sul, em Ituporanga, que represa as águas do Rio Itajaí do Sul. Em 1992, a maior das barragens – com quase quatro vezes a mais de capacidade -, foi levantada em José Boiteux para controlar o fluxo do Rio Hercílio.
Logo veio o impacto positivo. As cheias ocorriam, em média, uma vez a cada dois anos até a década de 1980. Nos anos 2000, só foram registradas em 2001 e 2008.
Mas a enchente de 9 de setembro de 2011 ressaltou a necessidade de ampliar as duas barragens mais antigas. Ambas transbordaram com a chuva no Alto Vale e não contiveram a inundação das cidades próximas. Conforme o Departamento Estadual de Infraestrutura (Deinfra), responsável pelas barragens, um estudo da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica) pretende ampliar as estruturas de Taió e Ituporanga.
Previsão ainda é incerta
Em 1983, a Furb elaborou o Projeto Crise, para ações de monitoramento do clima, níveis de rios, modelos de previsão hidrológica e cartas de risco. Cinco estações telemétricas foram instaladas no Vale pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica. O sistema de alerta de cheias foi o primeiro do Brasil. Mas a falta de investimento do governo federal na instalação de outras cinco estações enfraqueceu o projeto, que sofria sem verba para manutenção.
Desde 2009, o Centro de Previsão e Alerta de Cheias (Ceops), da Furb, firmou parceria com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Sustentável para manutenção de 16 estações de telemetria, que medem o nível dos rios e quantidade de chuvas. A estrutura é moderna, mas desde julho, devido a problemas no sinal de telefonia celular, as informações coletadas não são enviadas à sede do Ceops. Os técnicos são obrigados a adotar a coleta manual de dados. O meteorologista Dirceu Severo afirma que um projeto para melhorar o sistema já foi apresentado ao Estado.
Profissionalização
Depois de 1911, a próxima cheia ocorreria somente em 1923, com 9,90 metros de pico. A população estava mais habituada ao fenômeno, mas os jornais da época publicavam reportagens contestando a falta de uma organização que transmitisse as informações meteorológicas e emitisse alertas. Em 1927, havia sistema de medição, mas os dados do Alto Vale só chegavam por telégrafo. Foi quando começou a despertar a necessidade de criar um órgão como a atual Defesa Civil.
– Em 1911, não havia barragens no Vale e a população não tinha o controle rigoroso do ciclo de cheias. Como as informações eram escassas, a população se sentia lesada pela falta de acompanhamento – conta a diretora do Departamento Histórico de Blumenau, Sueli Petry.
Na cheia de 1957, que atingiu 12,86 metros, uma Defesa Civil improvisada, com agentes das polícias Civil e Militar, Exército, Corpo de Bombeiros e os técnicos da antiga Empresa Força e Luz, atuou no monitoramento do rio e no socorro dos atingidos.
Uma lei estadual em 1984 designou a criação de um órgão estadual organizado. Quatro anos mais tarde, a prefeitura de Blumenau desenvolveu a Diretoria de Defesa Civil, com planos de resgate, abrigos e mapas das cotas de cheia.
Os deslizamentos
Depois da tragédia de 2008, que além da enchente de 11,52 metros registrou mais de 300 deslizamentos, a Defesa Civil foi elevada à categoria de secretaria municipal e passou também a fiscalizar obras em áreas de risco.
– Diante do tamanho do evento de 2008, o objetivo era dar autonomia à Defesa Civil para unir o trabalho de socorro à prevenção de catástrofes por meio da fiscalização – explica o prefeito João Paulo Kleinübing.
A prefeitura também criou a Diretoria de Geologia, para estudar o tipo de solo das áreas ocupadas em Blumenau e desenvolver estratégias para prevenir movimentações de terra e delimitar áreas habitáveis. Segundo Kleinübing, a intenção é transformar em breve o departamento em instituto, que fará também o monitoramento constante do solo.
Desde a primeira quinzena de setembro, a prefeitura passou a executar, com os técnicos do Ceops, a revisão das cotas de enchente para as ruas de Blumenau.
Soluções vêm do Japão
Após as enchentes de 1983 e 1984, uma comitiva de técnicos e engenheiros da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica) veio ao Vale do Itajaí estudar as condições geográficas da região e projetar soluções para as cheias. Finalizado em 1988, o estudo conhecido como Projeto Jica propunha o alargamento do Rio Itajaí-Açu da nascente até a foz. Mas a principal proposta era a construção de cinco barragens, sendo duas delas em Trombudo Central e outras três em Benedito Novo, Apiúna e Botuverá. As medidas foram abandonadas porque se mostraram inviáveis devido ao impacto ambiental e social que causariam.
Desde maio do ano passado, os japoneses elaboram novo plano de contenção de cheias. Os primeiros resultados foram apresentados no início de setembro e apontam para a necessidade de ampliar o volume de barragens de Taió e Ituporanga, aumentar áreas de inundação natural, construir três pequenas represas, implantação de uma barragem em Botuverá, alargar e aprofundar o Rio Itajaí-Açu em alguns trechos, construir diques e desenvolver um canal para extravasar o rio na altura de Navegantes, que evitariam alagamentos em Itajaí.
Também estão previstas as remoções de moradores próximos às margens do rio e dos ribeirões Garcia e Velha, em Blumenau, e o fortalecimento do sistema de alerta. Todas as ações devem ser executadas em 20 anos e custarão R$ 2 bilhões. Ainda não há previsão de início da primeira etapa, que levará quatro anos e exigirá R$ 185 milhões.
– A população pensa que as medidas solucionarão o problema para sempre. Mas cada evento climático é um evento que pode ter desdobramentos novos. Apesar de eficiente, é importante saber que nenhuma medida é infalível – alerta o meteorologista do Ceops, Dirceu Severo.
GOVERNO IGNOROU COTAS ANTIGAS |
As barragens de Taió e Ituporanga foram executadas pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), que também projetou a estrutura de José Boiteux. Nos estudos da década de 1960, garantia que as três represas solucionariam as cheias, mas desconsiderou as marcas que o Rio Itajaí-Açu atingiu em 1880 (17,70 metros) e 1911 (16,90 metros), levando em conta apenas registros após 1931. Acreditava-se que as marcas mais altas nunca se repetiriam. O DNOS estimou, em 1976, que as barragens limitariam enchentes a 9,90 metros em Blumenau. As cheias de 1983 (com 15,34 metros) e 1984 (15,46 metros) provaram o contrário. |
Fonte: Tese de doutorado de Beate Frank – Uma Abordagem para o Gerenciamento Ambiental da Bacia Hidrográfica do Rio Itajaí |
MARCAS DA CHEIA |
Na parede da Usina do Salto, duas plaquetas de bronze registram a altura que as águas de 1911 alcançaram. As marcas foram transpostas das casas das famílias Lukas (que apontou 20m de água) e Sachse (com 21m). As casas ficavam na margem esquerda do rio, oposta à da usina |
VOCÊ SABIA? |
Durante décadas, a prefeitura de Blumenau forneceu gratuitamente canoas para as ruas inundadas pela enchente. A medida reduzia faltas ao trabalho. Mas, devido ao crescimento populacional nas áreas inundáveis, os prejuízos se tornaram maiores e o transporte pela água perdeu importância. |
Fonte: Tese de doutorado de Beate Frank – Uma Abordagem para o Gerenciamento Ambiental da Bacia Hidrográfica do Rio Itajaí |
CHEIA PODE SE REPETIR |
Um século depois, Blumenau não está livre de uma enchente como a de 2 de outubro de 1911. O engenheiro hidrometrista do Ceops Ademar Cordero calcula que bastaria chover 370 milímetros em dois dias sobre a Bacia do Rio Itajaí-Açu. Na enchente de 9 de setembro deste ano, quando o Itajaí-Açu alcançou 12,80 metros em Blumenau, choveu 230 milímetros em dois dias na bacia toda. |
COMO ERA FEITA A MEDIÇÃO? |
O primeiro ponto de medição do nível do Rio Itajaí-Açu foi implantado pelo colonizador Dr. Blumenau. Ficava no entroncamento com o Ribeirão Garcia, embaixo da ponte de ferro que havia ao lado do Biergarten. Em 1906, o ponto foi movido para a margem direita, próximo ao atual Mausoléu Dr. Blumenau, onde permaneceu até 1967 |
Havia outros três pontos de medição: na Usina Hidrelétrica Salto (desde 1914), no extinto porto do Bairro Itoupava Seca (desde 1928, desativado em 1954) e no Centro, sob a Ponte Adolfo Konder (desde 1939, reinstalada na década de 1960 após as obras da Avenida-Beira Rio). A régua foi usada até 14h do dia 9 de setembro de 2011, quando a correnteza arrancou a base onde estava fixada |
Para unificar as medidas feitas por réguas diferentes e estabelecer um padrão para a cota de cheias em Blumenau, a equipe do Ceops reviu, na década de 1980, a tabela de medidas históricas, equiparando-a com as medições que vinham sendo feitas na régua da Ponte Adolfo Konder. A iniciativa permitiu a organização dos níveis máximos acima de 8,50 metros, marca em que começam a ser inundadas as primeiras ruas |
Fonte: Tese de Mario Tachini – Avaliação de Danos Associados às Inundações no Município de Blumenau; cientista social Adalberto Day; diretora do Departamento Histórico de Blumenau, Sueli Petry |
Veículo: Jornal de Santa Catarina.
Edição: 12338.
Editoria: Geral.
Página: 10.
Jornalista: Cristian Weiss (cristian.weiss@santa.com.br).