Derrubada causa disputa jurídica e acirra embate federativo

Com a derrubada do veto da presidente Dilma Rousseff à redistribuição da renda petrolífera em tumultuada sessão do Congresso Nacional encerrada nos primeiros minutos de ontem, começa nova batalha no Supremo Tribunal Federal (STF) e instala-se dúvida jurídica sobre a destinação de royalties e participações especiais arrecadados com os contratos em vigor. Além disso, alguns temem instabilidade para a realização da 11ª rodada de licitações de novos blocos de exploração no mar, prevista para maio.

A apuração dos votos acabou nesta madrugada e a derrubada foi por ampla maioria. Como foram 142 dispositivos vetados e os parlamentares deliberaram sobre cada um, os resultados variam de acordo com o item deliberado, especialmente na Câmara dos Deputados. O menor número pela derrubada foi de 349 (eram necessários 257) e o maior, 354. O maior número de deputados que votaram pela manutenção dos vetos foi 45. No Senado, o placar foi mais homogêneo: 54 senadores foram favoráveis à derrubada dos vetos (eram necessários 41 votos) e 7 à manutenção.

A decisão é histórica. É raro o Congresso deliberar sobre vetos presidenciais (há mais de 3 mil acumulados), assim como derrubá-los, o que exige quórum qualificado (votos da maioria absoluta de deputados e senadores), em sessão conjunta. O último veto rejeitado foi do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005, a projeto que concedia reajuste salarial de 15% a servidores da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Com relação aos royalties, além da anunciada decisão dos governos do Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo de contestar no STF a constitucionalidade da mudança nas regras atuais de repartição dos recursos – que será consequência da derrubada do veto -, parlamentares fluminenses e capixabas vão apresentar mandados de seguranças ao tribunal pedindo anulação da sessão. "Esta sessão está marcada por vícios, pelo atropelo da Constituição e do regimento interno", afirmou o senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que liderou movimento de retirada de parte das bancadas fluminense e capixaba do plenário.

Foi um protesto contra a condução da sessão pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que também preside o Congresso, acusado por representantes desses Estados de agir de forma "autoritária", desrespeitando o regimento. Renan limitou o tempos dos discursos e o número de questões de ordem apresentadas. "Fora Renan", gritavam fluminenses e capixabas.

As quatro horas de reunião foram marcadas por bate-bocas, gritos e um claro acirramento de conflitos federativos. O deputado Alessandro Molon (PT-RJ), por exemplo, disse que os próximos Estados a perder recursos serão aqueles que recebem royalties pela mineração. "Será um tiro no pé", afirmou a um plenário lotado e impaciente para derrubar o veto. O vice-governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, já havia dito no Congresso que os Estados que recebem royalties por energia elétrica também ficam ameaçados.

A bancada de São Paulo, orientada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), votou contra a derrubada do veto. O líder do PSDB no Senado, Aloysio Nunes Ferreira (SP), responsabilizou o Palácio do Planalto de ter se "omitido" nesses mais de quatros anos de discussão sobre a redivisão da renda petrolífera, causando "bagunça política" e "esgarçamento da federação". Disse ser uma "vergonha" que líderes do governo não tivessem a "coragem" de subir à tribuna para defender o veto da presidente. "Chegamos a um ponto aqui em que vaca não conhece bezerro", afirmou.

Ao todo, foram 142 dispositivos que a presidente retirou de projeto de lei aprovado no Senado e na Câmara, que criam novos percentuais de divisão do dinheiro entre Estados e municípios do país e definem outros detalhes da distribuição. Pela regra que o Congresso pretende fazer valer, os Estados confrontantes mantêm os valores recebidos com royalties e participações especiais em 2010 e, a partir daí, os percentuais a eles destinados caem até 2020, enquanto os do Fundo Especial repartido entre todos os Estados e municípios do país, crescem.

A presidente argumentou inconstitucionalidades e contrariedade ao interesse público para vetar 142 itens da proposta. Deixou apenas as regras para a divisão no modelo de exploração de partilha de produção. Os parlamentares votaram em uma cédula de papel depositada em urnas e a apuração dos votos começou imediatamente após a sessão, por determinação de Renan. A parte técnica da apuração terminou às 4h30 de hoje.

Como altera a repartição da receita dos campos marítimos já em exploração, os dois maiores Estados confrontantes com áreas petrolíferas – Rio e Espírito Santo, também chamados de "produtores"-, sofrerão grandes perdas de recursos.

Rio, Espírito Santo e seus municípios concentram hoje mais de 82% da arrecadação total com a exploração atual de petróleo. O que os demais Estados e municípios querem com a nova regra é uma distribuição mais equilibrada do dinheiro.

Com a implantação dos novos percentuais, o Fundo Especial destinado aos 27 Estados e a todos os municípios do país passaria dos atuais R$ 1,3 bilhões para R$ 8 bilhões já no próximo mês, de acordo com os defensores da proposta. O argumento básico é que o petróleo encontrado no mar pertence à União e não aos Estados e municípios confrontantes. Por isso, a riqueza teria de ser distribuída ao país todo.

A principal defesa do mérito da manutenção do veto coube ao senador Francisco Dornelles (PP-RJ). Ele disse que estão confundindo petróleo com royalties. "O petróleo pertence à União, mas os royalties são uma compensação de natureza indenizatória devida aos Estados e municípios pelo desgaste da exploração. É uma receita originária dos produtores e confrontantes, que não pode ser distribuída a outros entes federativos", disse.

O senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), que foi relator do projeto de lei vetado por Dilma – de autoria do senador Wellington Dias (PT-PI), atual líder da bancada petista – diz que a decisão do Congresso não corre riscos no STF, porque "o argumento de direito [contra a derrubada] é fraco". Segundo ele, o royalty não tem natureza indenizatória.

"O artigo 927 do Código Civil é claro: a obrigação de reparação é de quem causou prejuízo a outro por ato ilícito. A responsabilidade é de quem causa o dano. Além disso, não há relação contratual entre os Estados e as petroleiras e, portanto, não há quebra de contrato".

O pagamento de compensações a Estados e municípios produtores e confrontantes está previsto no artigo 20 da Constituição, mas a discriminação da repartição dos recursos é tratada em lei ordinária (número 9.478, de 6 de agosto de 1997), que define as regras da exploração do petróleo pelo modelo de concessão.

Ao vetar parcialmente o projeto de Vital e Dias, que também teve o deputado Marcelo Castro (PMDB-PI) entre seus idealizadores, Dilma sancionou a parte da proposta que fixa os critérios de distribuição da renda petrolífera que será proveniente dos campos da camada pré-sal, explorados pelo modelo de partilha de produção. Mas, como o pré-sal no modelo de partilha deve demorar anos para começar a render, os Estados e municípios produtores querem aumentar sua receita imediatamente, recebendo fatia da renda obtida pelos contratos em vigor, que incluem cerca de 28% do pré-sal descoberto no país, de acordo com o governo.

Outra dúvida jurídica a ser causada pela derrubada do veto é o conflito entre a nova lei e a medida provisória editada por Dilma para suprir a lacuna deixada pelo veto. Entre outras coisas, a MP determina que a mudança da regra proposta no projeto vetado seja aplicada na divisão dos recursos dos campos licitados após a edição da medida (dezembro de 2012) e destina para a educação a receita de Estados e municípios.

Entre os dispositivos vetados por Dilma, vários se referem aos novos percentuais de rateio dos royalties e participações especial do petróleo retirado do mar, pelos quais a parcela dos Estados confrontantes diminui até 2020 e a do Fundo Especial dividido entre os 27 Estados e municípios, pelos critérios dos fundos de participação, aumenta.

Dilma argumentou que isso fere o disposto no artigo 20 da Carta, que define royalties como compensação financeira a unidades, em razão da exploração do petróleo em seu território ou plataforma marítima.

A presidente também vetou dispositivos que davam aos Estados e municípios confrontantes o direito de optar por receber sua parcela no Fundo Especial ou o percentual das receitas compensatórias.

Veículo: Jornal Valor Econômico.
Edição: 3209.
Editoria: Política.
Página: A6.
Jornalista: Raquel Ulhôa, de Brasília.