Com \"extras\", os 26 Estados cumprem piso para professor

Dois anos após entrar em vigor, a Lei 11.738, que instituiu o piso nacional dos professores da educação básica, fixado hoje em R$ 1.024, ainda gera polêmica. Desde a aprovação da legislação, muitos Estados criaram planos salariais para se enquadrar na lei. Pelo entendimento acatado em liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), todos eles mais o Distrito Federal cumprem a regra em relação à maioria dos docentes das redes estaduais, que são aqueles com diploma universitário. Já na avaliação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), pelo menos três Estados precisam somar o vencimento básico com uma série de gratificações – vantagens comuns na folha de pagamento do magistério público – para cumprir o piso. E outros o descumprem para professores sem curso superior.

Apesar de contestada pelos sindicatos, a prática de somar gratificações ao piso para alcançar o valor de R$ 1.024 é legal, segundo liminar do STF concedida em 2008 à ação direta de inconstitucionalidade de cinco governadores (RS, SC, PR, MS e CE). Para a CNTE, o piso deve ser composto apenas pelo vencimento básico. "É assim que a lei foi aprovada originalmente, por isso trabalhamos com a lógica de que poucos Estados e municípios a cumprem. Existem divergências sobre o valor pago, que não é o salário-base. A ação dos governadores causou uma grande celeuma, que só atrasa avanços nos projetos de valorização e carreira do magistério", conta Roberto Leão, presidente da entidade.

O vice-presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed), Haroldo Corrêa Rocha, disse ao Valor que, apesar das dificuldades, todos os Estados conseguiram ficar dentro da lei, mas não abriram mão das gratificações como componente do piso salarial. "Os 'penduricalhos' são frutos do Brasil inflacionário. Sempre que havia pressões criava-se uma gratificação para o salário do professor não perder valor. Ainda há muitos servidores com essas vantagens, mas os novos chegam com composições salariais mais simples, graças aos planos formulados pelos Estados", explica Rocha, que também é secretário estadual de Educação do Espírito Santo.

Excluídos os tradicionais "penduricalhos" da folha de pagamento do magistério, a CNTE insiste em afirmar que o salário-base de professores com licenciatura de Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul é inferior aos R$ 1.024 estipulados pela lei. No caso de docentes que apenas concluíram o ensino médio – minoria na rede estadual -, a maioria dos governos estaduais precisa complementar o vencimento básico para cumprir o piso salarial. "Por exigência da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica, de 1996], o professor com curso de normalista está em extinção. Quando a lei foi implementada, em 2008, apenas 16 servidores estavam nessa condição na rede estadual do Espírito Santo, que tem hoje 26 mil docentes", complementa Rocha.

Elizete Mello, diretora de desenvolvimento humano da Secretaria Estadual da Educação de Santa Catarina, explica que, com regências de classe e outras vantagens, a remuneração do professor chega a R$ 1.024 ou supera o piso. "O STF entende como valor-base a soma das remunerações, logo o piso passa a ser a remuneração final. A CNTE diz o que quer", argumenta Elizete. Segundo ela, o atual governo catarinense espera a transição pós-eleição para definir nova política de cargos e salários para o magistério público.

Em Minas Gerais, esse planejamento já foi definido e entra em vigor a partir de janeiro do ano que vem. A adoção do pagamento por subsídio no Estado vai unificar a remuneração de 200 mil professores e pôr fim aos "penduricalhos", que, em alguns casos, ocupam mais de 20 itens do contracheque do professor. Segundo João Antonio Filocre, secretário-adjunto da Educação, a reformulação salarial da carreira docente no Estado vai reduzir as atuais distorções da folha de pagamento do magistério mineiro. "Para servidores com mais de 20 anos de carreira, o vencimento básico representa 37% da remuneração, enquanto para os mais novos é de 54%. O novo modelo poderá reduzir essa distância ao vincular a remuneração a uma parcela única na remuneração."

Segundo Filocre, a unificação de diferentes vantagens salariais na educação já funciona no Espírito Santo, Mato Grosso e Maranhão e em várias carreiras federais. O impacto da reforma salarial no Orçamento de Minas Gerais será de R$ 1,3 bilhão por ano. "Todos os servidores ganharão um reajuste de pelo menos 5% no processo. O professor com nível superior terá salário médio para início de carreira de R$ 1.650, para jornada semanal de 30 horas."

No Rio Grande do Sul, onde o piso só é cumprido com a soma de salário-base e gratificações, uma reforma salarial na educação foi barrada pela Assembleia Legislativa este ano. "Em função da lei do piso, o Executivo propôs a uniformização dos salários de professores para R$ 1.500, mas a medida não passou por causa do período eleitoral", informou a assessoria de imprensa da Secretaria Estadual da Educação.

Na avaliação de Cláudia Cruz, superintendente de recursos humanos da Secretaria Estadual da Educação da Bahia, o excesso de vantagens contidas no contracheque dos professores brasileiros contribui para "diferentes interpretações sobre o que é piso e o que é remuneração". Lei estadual do ano passado corrigiu os salários na área de educação e estabeleceu apenas uma gratificação fixa. "A referência da lei do piso é um vencimento básico de R$ 1.308, mais 31,18% de vantagem de estímulo à atividade docente. Outras gratificações são variáveis", comenta.

De acordo com apuração do Valor, Ceará, Pará, Sergipe, Paraíba, Acre, Alagoas e Pernambuco, além do Mato Grosso, Espírito Santo e Maranhão, também criaram leis para ajustar os salários dos professores da rede pública à lei do piso, que prevê reformulação dos modelos salariais. "Se o Supremo decidir desconsiderar a atual regra de remuneração do piso, nós não seremos pegos de surpresa nem obrigados a correr para reajustar salários e comprometer o Orçamento do Estado", diz Cláudia.

Referência salarial para docentes remonta ao Império

A primeira tentativa de criação de um piso salarial para professores no Brasil remonta aos tempos do Império. Em 1827, Dom Pedro I decretou: "Em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos, os presidentes taxarão, em Conselho, os ordenados dos professores, regulando-os de 200$000 a 500$000 [réis] anuais".

A legislação imperial nunca foi cumprida até 1981, quando a Confederação de Professores do Brasil (CPB) – hoje Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) -, apresentou ao Congresso Nacional a primeira proposta de piso nacional para o magistério público, no valor de três salários mínimos para uma carga horária semanal de 20 horas. As discussões não avançaram e permaneceram como reivindicação história do movimento sindical.

Quase 15 anos depois, a CNTE entrou em acordo com o Ministério da Educação (MEC) para a adoção de um piso de R$ 300 (20 horas semanais) a partir de 1995. A medida foi revogada pela área econômica do governo Fernando Henrique Cardoso. Somente em julho de 2008, o Congresso aprovou a Lei 11.738, que estabelecia como piso nacional o salário de R$ 950 para professores da rede pública para uma 40 horas semanais. Dois terços do valor deveriam ser pagos a partir de 1º de janeiro de 2009, com integralização a partir do início deste ano.

De acordo com a legislação aprovada pelos parlamentares da Câmara e do Senado e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o reajuste anual do piso deveria obedecer a variação custo-aluno do Fundo Nacional de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e do Magistério (Fundeb), o que representaria aumento anual superior a 15%. Um mês depois, o MEC contestou esse reajuste e pediu para o Congresso corrigi-lo, trocando o indicador pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que ficou abaixo de 5% em 2009 e elevou o piso para R$ 1.024 para 2010.

Em outubro, três dias depois do segundo turno das eleições municipais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Ceará protocolaram ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra a lei do piso no Supremo Tribunal Federal (STF), reclamando de interferência na autonomia financeira dos Estados. Os governadores queriam que o piso fosse composto pela soma do vencimento básico e das várias gratificações tradicionalmente recebidas pelo professor da rede pública em todo o país. Além disso, questionaram o período de atividade pedagógica que o docente deveria manter fora da sala de aula. No começo de dezembro de 2008, o STF concedeu liminar aos governadores sem julgar os méritos da ação.

Em janeiro de 2009, Estados e municípios começaram a pagar parcialmente o piso de R$ 950, valor que passou para R$ 1.024 a partir de janeiro de 2010. Estados e municípios lançaram mão de leis estaduais de planos de cargos e salários para o magistério público para atingir o valor legal. A CNTE e várias entidades educacionais não reconheceram o cumprimento da lei, da forma como ela foi aprovada em 2008, e pressionaram o STF para julgar o mérito da Adin dos cinco governadores que se posicionaram contra o piso salarial. O relatório do ministro Joaquim Barbosa está pronto desde setembro, mas o julgamento não tem data para ocorrer.

Veículo: Jornal Valor Econômico.
Edição: 2632.
Editoria: Brasil.
Página: A6.
Jornalista: Luciano Máximo, de São Paulo.